Estruturas
e processos sociais de reprodução do saber popular
como
o povo aprende?
(Um
projeto coletivo de pesquisa
em
antropologia da educação)
Preâmbulo
- escrito em março de 2021
Será
preciso retornar décadas para localizar entre os “tempos da academia”, este
documento. Ele vale, hoje, bem mais como um depoimento de época; como uma
memória.
Posto
por escrito, apresentando a julgamento, aprovado, coletivamente vivido e
precariamente publicado, terá sido este um primeiro ou um quase pioneiro projeto
de pesquisa de campo, em tempos em que ainda não havia, ou seria silenciada e
quase desconhecida esta junção de palavras: “antropologia da educação?” Quando
elaboramos o presente projeto de pesquisas no já distante ano de 1980, eu não
havia ainda ouvir falar dela ou sobre ela.
Eu, que ao longo de minha vida estive sempre peregrinando nos
territórios de fronteiras (longas, distantes fronteiras então), entre a
pedagogia de onde eu vim através da educação popular e a antropologia à que
cheguei, através da cultura popular.
Quando
em tempos de uma antropologia ainda nascente no Brasil, sobretudo através de
programas novos de pós-graduação (mestrados e, depois, doutorados) em absoluto
nada se falava a respeito de uma “antropologia da educação”. E a seu respeito
ainda hoje fala-se e se escreve muito pouco. Quem se resolva a uma pesquisa
sobre “temas antropológicos” verá que há muito mais pesquisas e escritos sobre
culinária, vestuário, tatuagem e diferentes transgressões, do que a esse
estranho conjunto entrelaçado de práticas e de vocações a quem damos nomes
como; “aprender”, “ensinar”, “pedagogia”, “educação”.
Assim
é que recém-chegado ao então Conjunto de Antropologia, do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, eu
trouxe comigo algumas estranhas de práticas e experiências anteriores, com que
comecei a minha vida como professor, entre os anos de 1967 e 1968, na
Universidade Federal de Goiás. Falo de experiências de interação entre
aulas-e-pesquisas, algo muito raro então, sobretudo porque aqueles foram os
“anos da ditadura militar”. Tempos em que nas universidades havia,
“infiltrados”, agentes do malfadado “Serviço Nacional de Informação – SNI”.
Anos em que estudante e professores “suspeitos” eram cuidadosamente “vigiados”.
Fui sempre um deles. E tive mais sorte do que outros, presos, torturados,
exilados. Anos em que a cada março os
“programas de curso” de cada professora, de cada professor, deviam ser “levados
à diretoria da faculdade”. E lá seriam “examinados por agentes de segurança”. E
alguns eram aprovados, outros descartados e sumariamente condenado a uma severa
revisão para que deles fossem retiradas propostas de estudos e citações de
livros supostamente “subversivos”. Mais de uma vez precisei fazer tais revisões
“ideológicas”. E de um dos programas de estudo tive que retirar da bibliografia
dois livros “do comunista Antônio Gramsci”.
Tais foram os tempos em eu comecei a viver a
então arriscada aventura de “ser professor universitário”. E desde o começo resolvi
que os meus cursos seriam, sempre que possível, vividos e dialogados através da
interação – não raro muito difícil – entre momentos de “estudos em sala de
aulas” e a vivência partilhada de
pequenos e correlatos “projetos coletivos de pesquisas”, em que “no
campo e na prática” vivíamos o que em teoria estudávamos nas aulas.
Muitos
anos depois de maio de 1980, em julho de 2011, já aposentado da UNICAMP e
depois de trabalhar como “professor visitante” ou “convidado” em quatro
universidades, entre São Paulo, Minas Gerais e Goiás, eu me vi viajando com um
grupo de estudantes de um “Programa de Pós-graduação em Geografia”, da
Universidade Federal de Uberlândia a “quinta universidade”.
Ao
longo de onze dias “descemos” em uma barca o Rio São Francisco entre Pirapora,
onde o rio começa a ser navegável, e Manga, já na divisa com a Bahia. E ali eu
me via enfim quase me despedindo de uma longa e peregrina “vida de professor”.
E, mais uma vez, vivendo entre estudantes e um par de professores também
participantes a aventura de navegar “rio-abaixo” entre algumas breves “aulas a
bordo”, e longas paradas em ilhas (há muitas, rio afora) e em “barrancas do
rio” (há mais ainda), para entrevistarmos pessoas de “comunidades ilheiras” e
“barranqueiras” em breves e coletivas “oficinas de pesquisa”.
Voltemos
aos anos 80. Propus à
alunas e alunos de um dos meus cursos de graduação em antropologia uma outra experiência
coletiva de pesquisas. A resposta da “turma” foi entusiasmada. Então começamos por elaborar o projeto que ao
final escrevi, e que aqui transcrevo muitos anos depois. A presente versão
apresenta revisões e correções devidas.
Elaboramos
um projeto do que seria um embrião de uma “antropologia do saber”, ou “da
educação”. E ela tinha com base esta pergunta: “quando longe de nós e fora de
nossas escolas, como é que o povo aprende”. Divididos em duplas ou em
estudantes-solo, minhas alunas e meus alunos saíram a campo em cenários
próximos a Campinas. E eu também saí. Cada quem partiu do projeto aqui proposto e
elaborou o seu pequeno “projeto pessoal de pesquisa”. Durante um ano - em tempos em
que os cursos universitários eram anuais” - nós nos dividimos entre diálogos na
sala-de-aulas, e práticas de pequenas “oficinas de pesquisa”. Mas a pesquisa levou no seu todo cerca de dois
anos.
O
resultado de todas as “experiências de pesquisa de campo” foi publicado em uma
precária “edição mimeografada” e até hoje inexistente em alguma forma
eletrônica. Algumas de minhas então jovens alunas tornaram-se mais adiante
professoras-doutoras dos programas de Mestrado em Antropologia, Doutorado em Ciências
Sociais e Doutorado em Antropologia da UNICAMP.
Campinas,
30 de março de 2021 (quarenta anos depois)
Carlos
Rodrigues Brandão
SABER
E A REPRODUÇÃO DO SABER POPULAR: uma dimensão oculta de uma questão crítica na
Antropologia Social[1]
Um estudo sobre os modos de
reprodução do saber. Sobre as estruturas e os processos de relações sociais intra e extrafamiliares que respondem pela transferência
dos vários tipos e níveis de conhecimento entre camponeses, lavradores volantes
e operários de São Paulo e Minas Gerais.
Quais
as estruturas, as regras e as estratégias sociais e políticas de reprodução do
saber de classe no interior de grupos subalternos, e fora do âmbito das
relações diretas entre eles e as instituições eruditas de transmissão de
conhecimento e inculcação de habitus sociais?
Pesquisa Tipo: A
Coordenador
da pesquisa: Carlos Rodrigues Brandão
Conjunto
de Antropologia – Departamento de Ciências Sociais – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas
UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP
Professor
Assistente Doutor (regime de dedicação exclusiva)
Quantia
solicitada: Cr$ 421.500,00
Duração
do projeto: 22 meses
Data de início: 1º de maio de
1980.
Fundamentos do projeto
Como
se aprende?
Como
é socialmente reproduzido o saber que vai da tecnologia do cotidiano à
construção dos universos simbólicos?
Como
o povo aprende?
Como
se constituem, e sob que princípios operam as redes e sistemas populares de
reprodução do conhecimento entre sujeitos e grupos subalternos? Estas são as
questões da pesquisa deste projeto. São também questões que, a seu modo,
parecem compor parte de uma dimensão oculta a respeito de problemas críticos na
teoria e na pesquisa das ciências sociais e, mais ainda, da antropologia.
A
presente pesquisa tem a ver com o intervalo entre a teoria antropológica a respeito da questão da transferência do
conhecimento entre atores-atores do que estaremos denominando
aqui culturas populares, e algumas
questões práticas de projetos e programas de educação popular no Brasil.
Nós
nos propomos investigar e discutir estruturas
e modos e efeitos sociais da
reprodução do saber entre sujeitos de três categorias populares:
a)
camponeses sitiantes ou parceiros de trabalho agrário especializado;
b)
lavradores volantes migrados para a cidade;
c) operários da construção civil com uma
trajetória de vida anteriormente agrária, trabalhando preferencialmente em
pequenas unidades de produção, como olarias.
Partimos
teoricamente de algumas idéias que procuremos explicitar adiante. A idéia básica
é a de que grupos de sujeitos populares organizam, sustentam e reproduzem redes
e estruturas próprias de criação e reprodução de diferentes modalidades de
saberes próprios. De algo que entre outras estratégias populares de classe
garantem formas originais-patrimoniais de articulação dos diferentes níveis de
seus próprios modos de vida.
Antes
de começarmos a discutir teoricamente o problema, queremos demonstrar como esta
questão está subjacente aos temas investigados pela Antropologia Social desde a
sua era “clássica” até o Brasil de hoje, sem que, no entanto, tenha deixado de
ser uma espécie de “presença oculta”, ou seja, referida e não-pesquisada.
Fazemos esta resenha sumária usando textos de monografias clássicas e, no pólo
oposto, das mais recentes pesquisas da Antropologia Social no Brasil. Ao mesmo
tempo em que denuncio uma “dimensão oculta” que, agora, precisa ser
investigada, procuro delinear maneiras como ela tem sido tratada, mesmo que
marginalmente.
Uma
breve e intrigante resenha
Como
se aprende? Esta pergunta é muito freqüente em alguns campos da Psicologia
(Psicologia da Aprendizagem, Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia
Genética de Jean Piaget) e da Biologia. Ela é um caso de exceção nas ciências
sociais e, fora das tendências de “Cultura e Personalidade”, através da qual
alguns antropólogos aproximaram-se de psicólogos e psicanalistas, o problema
das formas sociais de reprodução do saber interessou a bem raros antropólogos.
Talvez uma notável exceção seja Margareth Mead, que entre os “nativos”,
descobriu o mundo das mulheres e das crianças e jovens[2].
Como o saber se reproduz socialmente? Esta
pergunta pensa a mesma coisa que a anterior, mas pensa ao contrário. E se ela é
mais frequente nas ciências sociais, é porque agora as
direções se opõem. Quando o território cultural de referência é uma sociedade
primitiva, a questão é quase sempre muito pouco discutida, justamente porque o
processo de reprodução do saber nunca aparece desvelado como acontece na
sociedade complexa. Ali onde a transferência de saberes é distribuída entre
instituições sociais de transmissão de conhecimentos, de preceitos de
convivência e de práticas utilitárias.
Quando
o quadro de referência é a sociedade de classe e, sobretudo, quando o foco
recai sobre os seus segmentos populares, quase sempre as pesquisas estão
dirigidas a discutir como as classes dominantes e os aparelhos de estado criam
e recriam instituições e especialistas ocupados na reprodução de um saber que garante para os seus
produtores e detentores, a reprodução de um poder.
Não é por mero acaso que desde a sociologia clássica a educação institucional e
sua agência preferencial, a escola,
têm sido o lugar quase único de estudos sobre a transferência do saber.
A todo momento algumas questões ligadas aos
diferentes tipos e modos de conhecimento nas sociedades primitivas são
consideradas nos estudos da Antropologia clássica. Mas em apenas um ou outro
caso os processos e as estruturas sociais de produção e transmissão do saber
são pesquisados a fundo, como se investigam rituais, por exemplo, e são discutidos
com o mesmo teor de detalhe dado a outros domínios da vida social.
A começar por Malinowski, a antropologia
procede nas Ilhas Trombiand a um excelente exercício precursor de descrições de
uma organização social primitiva, da estrutura de seu sistema econômico-ritual
de trocas, de inúmeros aspectos de tecnologia tribal, de seus inventários de
mitos e ritos de magia. No entanto, não há relatos equivalentemente detalhados
a respeito dos processos gerais e especializados de socialização de crianças e
de jovens, como sujeitos sociais do grupo, e/ou como um especialista em um
qualquer tipo de prática (Malinowski, 1976, especialmente o capítulo XVI).
Radcliffe-Brown trabalha um pouco mais a
questão da reprodução do saber, sem tirá-la, no entanto, de sua posição
marginal dentro do corpus de sua análise. “To fit a child for his proper place in the community
he needs to be educated!” (Radcliffe-Brown,
1964, p. 276). Ora, uma parte do processo de produção social do sujeito educado
e de criação de espaços socioculturais para diferentes categorias de pessoas e
de especialistas, é obtida por meio do ensino através da imitação e do
incentivo. Ele envolve as práticas de sobrevivência do grupo, como: caçar,
pescar, plantar, criar objetos do artesanato tribal. Uma outra parte é obtida
por meio da aquisição de “sentimentos e de disposições mentais-emocionais que
regulam a conduta dos membros do grupo” (1964, p. 276).
Mas,
aqui, a imitação e o incentivo acontecem dentro de situações cerimoniais
carregadas de um forte conteúdo emocional “na direção dos sentimentos desejados
pelo grupo” (1964, p. 277). Depois de afirmar que em todos os processos
socializadores da criança e do jovem de Adamam não há
sistemas institucionalizados de transferência de conhecimento, e mesmo de
controle da conduta, parece escapar a Radcliffe-Brown justamente a dimensão
francamente pedagógica do trabalho ritual iniciatório.
Entre os seus sucessores,
Evans-Pritchard é um dos que dedica uma mínima importância à descrição dos
modos sociais de transferência do saber, até mesmo quando descreve
criteriosamente entre os Nuer o sistema dos grupos-de-idade, as condições de
acesso e as cerimônias rituais e os rituais de iniciação. Tal como
Radcliffe-Brown, por não encontrar entre os Nuer sistemas intencionais
institucionalizados de socialização coletiva, ele não descreve a pequena
infinidade de práticas e de regras sociais que conduzem a troca do conhecimento.
“In seking
to understand how membership of an age-set determines a man’s behaviour we were first to realize that there is no
purposive eduction or moral training in the procedure
of iniciation” (Evan-Pritchard, 1968, p. 253).
Categorias
como “educação”, “saber”, “conhecimento”, “socialização”, não fazem sequer
parte do índice analítico de seu livro, embora sejam mencionadas aqui ou ali.
Isto significa que, participando do discurso que descreve, não azem parte das
categorias que analisam questões sociais relevantes. Assim, de algum modo
parece que todos os problemas relativos à trajetória de vida e à posição social
do sujeito fazem mais parte do mundo da natureza do que do mundo da cultura.
Dito de outro modo, estar neste ou naquele grupo-de-idade é mais uma questão do
ser da pessoa (haver biologicamente
atingido uma determinada idade), do que de um saber adquirido e legitimador de acesso a cada estágio. Também ao
estudar a religião Nuer, mesmo quando descreve as diferenças de
características, de posição no sistema e de trabalho simbólico entre o
sacerdote e o profeta (quando o autor aproxima-se
bastante de Max Weber), nenhuma palavra é referida à diferença entre tipos de
saber e tipos de prática ritual. (Evans-Pritchard,
1970, capítulo XII). Termos de uma “cultura pedagógica” estarão quase sempre
ausentes de índices onomásticos e dos capítulos da imensa maioria de livros
clássicos da antropologia, assim como de etnografias bastante recentes.
Em direção oposta, Raymond Firth incorpora
ao seu estudo sobre Tikopia a questão das relações
interpessoais produtoras de conhecimento social, sem fazer, no entanto,
concessões a um psicologismo funcionalista mais além de Malinowski, então
inaceitável na Antropologia Social Britânica (Firth, 1968, capítulo 5). Firth
chama educação todo o processo de
trocas sociais de efeito socializador, mesmo quando não institucionalizado e
passado dentro do âmbito familiar, como ele encontrou em Tikopia,
onde uma educação primitiva emerge das situações do cotidiano e não tem
qualquer caráter disciplinador direto. Quando descreve sistemas de reprodução
do saber observa que, ao contrário do que acontece nos sistemas formais da
educação na sociedade de classes: a) eles não ocupam unidades institucionais extra-familiares que reponham, sobre o conhecimento da
socialização primária recebida “em casa”, o conhecimento socialmente formal de
uma educação dada “na escola”; b) não são encarados como uma preparação para a
vida social, sendo “essencialmente” uma parte da própria vida social (Firth, 1968,
p. 134).
Entre as monografias clássicas da
Antropologia Social a que tivemos acesso, apenas o estudo de Firth pratica uma
descrição etnográfica das práticas familiares de socialização. Assim como das
regras de acesso a posições sociais decorrentes da aquisição de conhecimento
social, ao lado de desenvolvimento corporal.
Aqui, as intenções se dividem. Com
os pressupostos das teorias de cultura e personalidade, uma Antropologia menos
interessada na questão do teor político das relações sociais vai desenvolver
uma série de pesquisas sobre as regras, os sistemas e os efeitos das trocas
sociais de efeito socializador, sobretudo nas sociedades primitivas. Margareth
Mead pode ser tomada como um exemplo. (Mead, 1961 e 1962).
Mas, justamente os estudos cuja linha
teórica de análise é hoje mais fértil e difundida nas ciências sociais não têm
colocado a questão cultural e a dimensão social da reprodução do saber e dos
usos do saber aprendido. Não tem feito, por exemplo, duas das perguntas que
consideramos fundamentais para encaminhar nossos problemas aqui:
1ª-
De que modo grupos e sociedades constituem politicamente redes, sistemas e
instituições de reprodução do saber, como instâncias de garantia de seu poder
(grupos dominantes) ou de resistência política ao poder dominante (grupos
subalternos)?
2ª-
Quais as relações efetivas entre o acesso a tipos de saber e o aceso a
modalidades correspondentes de poder em diferentes setores da vida social, , especialmente entre grupos subalternos (conhecimento
tecnológico rústico geral ou especializado, conhecimento de práticas éticas,
religiosas, ou propriamente políticas)?
Recordamos que entre a década de
1950 e a de 1960, “Cultura e personalidade” e todo o pequeno rol de suas
teorias a respeito de processos e efeitos da socialização familiar sobre a
criança deixaram de ser um objeto de pesquisa respeitável na antropologia
social (Richards, 1970, p. 7). Os seus interesses migraram da Inglaterra para
os Estados Unidos e iriam recriar discussões de teor psicológico onde
justamente os dois itens que preocupam mais de perto esta pesquisa deixam de
ser cogitados: 1º- as estruturas familiares e extra-familiares
de transferência de conhecimento; 2º- as relações entre saber-e-poder intra e
inter classes e outras categorias sociais nas sociedades complexas[3].
Dos discípulos dos “clássicos” para
cá, a antropologia social concentrou-se em estudar a estrutura social da
organização formal de sistemas de parentesco e poder e, mais atualmente, as
relações sociais que recortam de vários modos estas estruturas e sistemas, e
provocam quebras e rupturas em sua ordem formal. Ao lado de uma aversão
coletiva em fazer perguntas cujas respostas tocassem a fronteira dos
departamentos de psicologia, a antropologia social de que falo aqui perguntou
pouco sobre algo pertinente aos processos sociais de construção das estruturas
e sistemas que descreveu. E ela dedicou muito pouco de suas teorias e pesquisas
aos determinantes de gênese e reprodução de tipos de saber, e a respeito da
ordem social em seus vários setores e níveis. (Richards, 1970, p. 8).
Para ficarmos em apenas dois
exemplos que podem ser generalizados no tempo e no espaço, essas perguntas não
fazem parte das questões de Leach em seu estudo sobre sistemas políticos em
Burma (1972). Não fazem parte também dos problemas diretos de Gluckman, muito
embora para ele e alguns dos seus seguidores as relações pedagógicas entre o
poder, a lei e o ritual estejam sempre, de algum modo, subjacentes ao que é
descrito (1967).
Procuremos colocar o olhar agora em
um âmbito mais próximo. No caso brasileiro, verificamos uma divisão de
abordagens do problema que acompanha a herança científica do pesquisador. As
que se aproximam mais de nosso dilema podem ser divididas em dois grupos: 1º- o
dos “estudos de comunidade”; 2º- o dos estudos setoriais sobre classes e
frações de classe no Brasil, com foco sobre a prática econômica e/ou ideológica
de grupos sociais subalternos.
Nos estudos de comunidade aparecem
aqui e ali algumas questões relativas à reprodução do saber de uma geração para
a outra, quase sempre no interior do grupo doméstico. Na melhor hipótese, são
feitos nestes estudos relatos de situações pedagógicas nos intervalos das descrições
sobre as regras das relações entre parentes, e a posição dos diferentes familiares
nas relações de parentesco e de trabalho, sobretudo entre camponeses. Não há
referências a sistemas coletivos extra-familiares de
inculcação de conhecimento e formação de habitus sociais. Por outro lado, são
também inexistentes análises a respeito dos determinantes do acesso a tipos de
conhecimento sobre a conquista de postos hierárquicos de poder comunitário
setorial da prática econômica, do trabalho religioso, do exercício de
atividades populares especializadas, como as de cura ou de artesanato, por exemplo[4].
De
uma parte não são estabelecidas a fundo as relações entre modos específicos de
socialização e os seus efeitos sobre a personalidade, a atribuição de
identidade e o comportamento social. De outra parte, também não se considera a
descrição de situações pedagógicas populares de âmbito doméstico, em direção a uma
discussão sobre as estruturas sociais do saber, e as relações políticas entre
modos de saber e de poder no âmbito comunitário.
Nas pesquisas mais recentes da
antropologia social no Brasil, as estruturas sociais inter
e intra
classes, as regras de suas relações setoriais e as representações
sociais destas estruturas e regras segundo os sujeitos do grupo estudado, são
discutidas analiticamente com muito maior profundidade. No entanto, fora os
casos de exceção, a questão da estrutura de reprodução do saber interna ao
grupo pesquisado, e a questão das relações entre saber-e-poder dentro e fora de
seu âmbito restrito continuam não sendo investigadas com a devida atenção.
Vejamos
alguns exemplos ligados principalmente a categorias de sujeitos associados
direta ou indiretamente ao trabalho agrário.
Em Engenhos de rapadura: racionalidade do tradicional numa sociedade em
desenvolvimento, Marúsia de Brito Jambeiro (1971), após uma descrição
detalhada do sistema interno de relações de trabalho nos engenhos tradicionais
de rapadura, quando descreve algo sobreo valor do saber e a transferência do
conhecimento, apresenta alguns modos e índices de acesso das famílias de trabalhadores
à educação formal. No entanto, toda a complexa ordem de saber diferenciado que
atravessa e participa da fixação dos contornos da rede hierarquizada de
produtores diretos no engenho não é discutida a fundo em momento algum[5].
Em outros estudos, como a série
notável de pesquisas de alunos de mestrado e antropólogos do Museu Nacional,
junto a categorias diversas de trabalhadores subalternos da agroindústria no
Nordeste, a questão do conhecimento especializado relativa à tecnologia do
trabalho é referida com alguma freqüência. Mas em análises da ordem social do
trabalho sob relações capitalistas e à luz da ideologia dos sujeitos
subalternos pesquisados, esta questão serve apenas como um dos indicadores de
categorias de trabalho e de tipos de trabalhadores.
A
prática pedagógica popular que reproduz as condições de diferenciação e
especialização da prática econômica subalterna na lavoura da cana, nos engenhos
e usinas, não é objeto de estudo. Como também não o são os processos de trocas
de símbolos e significados entre os trabalhadores subalternos, de modo a
produzirem juntos uma ideologia própria, como significante de sua posição de
classe, de sua condição de produtores e de seu modo de vida.
Entre as monografias desse ciclo
devemos fazer aqui referências a José Sérgio Leite Lopes (1978). A ideologia
subalterna que pensa a condição do trabalhador é clara e vem fácil à fala,
porque ela é um pensar direto sobre o fazer que ele se vê vivendo e realizando.
Mas este fazer mediatizado pelo maquinário da usina acaba sendo visto através
da máquina que determina a ordem do fazer e oculta os vários níveis das
relações entre os sujeitos que algo fazem. Por outro lado, artistas e
profissionistas da usina não falam sobre o saber
que conduz a diferenças do fazer dos
operários porque estão ocultas, fetichizadas, as relações sociais que
transcendem a máquina e colocam entre as homens
situações interpessoais de reprodução do saber, do aprender, do ensinar.
O grau de saber que separa, por
exemplo, o “artista” do “profissionista”, e separa este de “serventes” e
“ajudantes”, é negado na fala do trabalhador, porque o que parece ser exigido
de todos é um tipo de “habilidade” para o serviço, como algo que se incorpora
direto à prática do operário (Leite Lopes, 1978, p. 27).
“Aprender” não aparece como o produto
de relações interpessoais de efeito pedagógico, mas como um dado direto da
relação entre o trabalhador subalterno e o seu próprio trabalho. “Aproximando-se,
em sua auto-classificação,
dos serventes, os profissionistas da fabricação têm por critério sua rápida
aprendizagem (1978, p. 32).
A
idéia de uma gradação especializante de ofícios que
pressupõe uma gradação equivalente de conhecimentos especializados e que, por
sua vez, participa da escala de posições e poder, entre trabalhadores
subalternos, está sempre presente em todo o capítulo 1, desde a epígrafe em que
um servente enuncia: “Quem tem arte não se dobra” (1978, p. 19). Os operários
designam o “artista” como aquele “que sabe fazer as peças” (1978, p. 36). A
administração da usina cuida de controlar o “período de aprendizagem” do
artista e avalia criteriosamente o desempenho “de sua arte” (1978, p. 38). O
operário da agroindústria desenvolve a estratégia de estar sempre em busca do
saber que não tem, de modo a demonstrar ao chefe a presença de uma habilidade
inesperada (1978, p. 38).
Leite Lopes aproxima-se da questão
das regras das trocas sociais do saber que configuram em boa medida a estrutura
social do fazer, distribuindo categorias de trabalhadores entre postos de
habilidades cujos opostos são o servente e o artista - aquele que nada sabe e
aprende ao trabalhar X aquele que sabe e ensina com o seu trabalho. Entretanto,
a produção social do saber permanece também aqui como uma dimensão oculta, e a
sua análise não aparece sequer tal como deve existir no discurso do trabalhador[6].
Nesta progressiva aproximação a
monografias de pesquisa com categorias de trabalhadores vinculados a atividades
agrárias, devemos fazer referência ao estudo de José Vicente Tavares dos
Santos, Os colonos do vinho (1977). No capítulo II
(Os elementos da produção camponesa),
o autor separa um item para estudar: a socialização do camponês. Bem mais do
que todos os outros antropólogos consultados, Tavares dos Santos, mesmo sem
fazer ainda a discussão que afinal revele o processo e as regras da estrutura
das trocas sociais de reprodução do saber, enuncia a sua importância.
A reprodução da força de trabalho familiar
efetiva-se pela procriação e complementa-se através do processo de socialização
de crianças. Como a unidade produtiva camponesa condensa um núcleo familiar e
um núcleo produtivo, nele vão confundir-se também a socialização primária, por
meio da qual o indivíduo se converte em membro da sociedade, e a socialização
secundária, através da qual o indivíduo adquire o conhecimento específico de
papéis determinados pela divisão social do trabalho (Tavares dos Santos, 1977,
p. 50).
Entre
o lazer e o labor, o trabalho passa aos poucos a fazer parte da vida cotidiana
da criança e se transforma em um dos instrumentos de sua socialização. A
criança que primeiro brinca de trabalhar e, assim, começa a aprender as regras
da prática econômica camponesa, incorpora-se depois no trabalho como um labor
fora do lazer, onde completa a sua especialização como um produtor camponês
especializado (1977, p. 51). Lástima que o processo de transferências dos dois
modos de socialização de que fala o autor seja apenas sumariamente descrito.
Tal como em outros pesquisadores, a questão de saber aparece como uma referência
de passagem, e não como uma questão central de análise.
O estudo de Laís Mourão Sá sobre a
propriedade comunal e o campesinato livre na Baixada Ocidental Maranhense
(1975) é particularmente interessante. Esta antropóloga é uma das primeiras
pessoas a colocar no núcleo de sua análise o problema da relação entre a
reprodução do saber e a reprodução do trabalho e da ordem do sistema social de
produção de bens, serviços e símbolos. Ela começa por fazer a crítica de Galesky, para quem uma das características do camponês é
justamente ser ele um tipo de trabalhador “não-especialista” (1975, p. 97). Ao
contrário, como em outros tipos de produtores diretos de trabalho agrário, o
camponês produz uma economia própria, definida por uma modalidade específica e
especializada de conhecimento socialmente produzido e socialmente transmitido,
“que habilita os indivíduos ao desempenho das funções técnicas próprias à
agricultura camponesa” (1975, p. 97).
Seu objetivo é, então, o procurar
pelos princípios básicos desse tipo de conhecimento camponês e das suas
manifestações, tal como elas ocorrem ao nível da atividade produtiva (1975, p. 97).
Sem discutir a organização social do trabalho pedagógico de reprodução popular
do saber camponês, Laís Mourão reconhece e analisa a existência de um tipo de “saber
técnico” que tende a ser, quase sem as mediações do saber erudito
correspondente, uma “lógica da natureza” que o lavrador apreende e aprende a
manipular. Próxima a Levi Strauss, a antropóloga dedica-se a analisar esse
processo cognitivo coletivo como um modo de saber cultural que socializa a
natureza por meio de operações conceptuais, de “modos de categorizar os dados
naturais”.
Aqui saltamos de um plano ao outro.
Sem fazer, como os outros, a crítica dos modos sociais de reprodução do saber e
dos usos políticos de tais modos e de seu saber produzido, Laís Mourão Sá
realiza o exercício de procurar apreender o processo de transformação de uma
lógica pré-existente em um saber adquirido através de trocas entre o homem e a
natureza, mediatizado pelo trabalho, que organiza a ordem dessas trocas, sob a
forma de relações sociais próprias ao campesinato.
Esta nossa breve resenha de procura
dos sinais de uma questão sempre presente, mas nunca desvelada na Antropologia
Social, deve parar por aqui. Existem vários outros estudos próximos aos que
trouxemos até esta página, mas até onde pudemos compreendê-los, nenhum
acrescenta alguma coisa mais sobre os problemas enunciados aqui. Algumas perguntas
permanecem e inquietam. Por que, em tempos em que inúmeros tipos de trocas
sociais entre as mais diferentes categorias de sujeitos subalternos são intensos
e, às vezes, repetidamente investigadas, a questão das trocas sociais de
reprodução do saber em seus vários níveis permanece como uma dimensão oculta de
uma série de problemas presentes? Por que uma antropologia de orientação
estruturalista produziu estudos a respeito da lógica e das regras de produção
simbólica do saber, enquanto uma antropologia de orientação moderadamente
dialética não faz perguntas sobre a estrutura e as regras de reprodução social
do mesmo saber? Por que tipos e modos de ideologias de grupos subalternos
constituem um objeto de estudo tão presente, enquanto cultura subalterna
produzida e os processos sociais de produção do saber e da ideologia permanecem
como questão oculta? Por que sempre o sujeito de todas as pesquisas é o adulto
socializado e nunca a criança em socialização?[7]
O
objeto de estudo da pesquisa
Durante alguns anos o coordenador da
presente pesquisa esteve pesquisando junto a camponeses do interior de Goiás, e
junto a camponeses e lavradores volantes de São Paulo e de Minas Gerais. O que
constituímos aqui como objeto de estudo foi parcial e progressivamente revelado
ao longo daquelas pesquisas. Quando ele esteve realizando pequenas
investigações sobre aspectos do modo de vida e da ideologia de camponeses
meeiros, ou pequenos proprietários em Goiás, alguns fatos que têm a ver com o
que pretendemos investigar agora chamaram a nossa atenção[8]. Um
destes fatos foi a atitude sempre ambivalente dos pais com respeito à educação
de seus filhos. A Escola tendia a ser definida como um local absolutamente
necessário para a formação da criança camponesa, para que ela um dia alcançasse
“ter uma profissão” e, assim, se livrasse, através do saber erudito, do “cativeiro
da terra”[9].
Por
outro lado, o saber adquirido na escola era desconfiado em casa. Era
considerado como o conhecimento dos senhores, dos dominantes. Logo, seria um
saber “poderoso” que participa daquilo que atribui poder aos senhores e aos
ricos, e quase nunca aos “de baixo”, os “pobres da terra”. Em casos extremos
ele tendia a ser percebido como um saber inútil e invasor. Um conhecimento
“vindo de fora” e incapaz de aperfeiçoar o trabalho agrícola. Um saber portador
de alguns princípios, regras e símbolos contraditórios com os do campesinato
tradicional. Por isso o trabalhador subalterno reconhecia que precisa da
escola, mas desconfiava dela e do seu saber, como diferenciada acredita e
desconfia do médico, do padre, do juiz... e do antropólogo.
Um outro fato é a extrema
complexidade de situações de trocas populares de efeito pedagógico, ou seja,
intencionalmente dirigidas à transferência de tipos de conhecimento próprios ao
campesinato. Há, por exemplo, todo um sistema de carreira no “trabalho agrícola”
que acompanha a aquisição de conhecimentos gerais e especializados sobre a
profissão, a evidência de habilidades e o desenvolvimento corporal. Ao longo
dela, o menino transita de um auxiliar desqualificado que “leva comida pros
homens na roça” a um adolescente, lavrador independente, “cuidando da sua roça
na meia”. Há também uma notável variedade de tipos especializados de
conhecimentos patrimoniais que reproduzem, sobre a mulher pronta para ser “dona
de casa” e sobre o homem pronto “para a lavoura”, o complexo quadro dos
especialistas rústicos: a parteira, a benzedeira, o curandeiro, o raizeiro, o
rezador, o capelão, o dirigente de grupos rituais do catolicismo popular, o
pedreiro, o carapina-marceneiro, o ferreiro “da roça”, o vaqueiro, o peão.
Enfim, os diferentes tipos de artistas, artífices e artesãos de madeira, couro,
palha, barro. E mais os artistas e intérpretes de músicas e outras criações do
“mundo camponês”.
Existe,
portanto, todo um processo estruturado de socialização primária que transforma
a criança em um sujeito social incorporado, através de uma progressiva
inculcação de princípios e regras do código de relações sociais, no modo de
vida do campesinato. Mas há também toda uma série de situações pedagógicas
intra e extra-familiares que reproduzem sobre o “cidadão camponês” o especialista
rústico redefinido através da prática econômica do lavrador, ou por meio das práticas
especializadas e/ou simbólicas dos diversos tipos de produtores de bens e de
serviços citados acima, fração de uma lista quase interminável.
Estas
situações pedagógicas populares são apenas a face visível de sistemas sociais e
hierárquicos de gradações, carreiras e posições de especialistas vinculados a
tipos e níveis de saber-fazer e saber-pensar reconhecido como interno ao grupo,
legítimo e necessário. Quando começamos a realizar estudos sobre religiões
populares em São Paulo e Minas Gerais, multiplicamos a nossa atenção para
questões relativas ao saber e às reciprocidades relativas ao saber. Mais do que
em Goiás, algumas frações dos sistemas populares de aquisição, posse, uso e
transferência de conhecimento rústico começaram então a se desvendar de sua
dimensão oculta. Muito mais do que havia entrevisto até então, uma ordem social
de reprodução do saber popular surgia como algo essencial e espontâneo no
discurso de agentes locais do catolicismo, do protestantismo pentecostal e das
religiões mediúnicas não-kardecistas (candomblé, umbanda e saravá). “Mestre”,
“discípulo”, “profissão”, “saber”, “ensinar”, “aprender”, tornavam-se, então,
palavras comuns nas entrevistas de nossos informantes: camponeses, lavradores
volantes e operários de construção civil ou de pequenas fábricas[10].
As suposições anteriores foram
reforçadas e a elas foram acrescentadas outras. A primeira é a de que frente a
invasão de instituições e aparelhos de inculcação de habitus e de ideologias
hegemônicas não reduzem os mecanismos e os sistemas internos aos grupos
subalternos de reprodução de todos os níveis e tipos de conhecimentos
equivalentes. Aquém e além das fronteiras das estruturas eruditas de inculcação
do saber, como as escolas primárias, os cursos de alfabetização e supletivo de
jovens e adultos, os programas de extensão agrícola e de economia doméstica, os cursos de “arte culinária”, de “corte
costura”, de higiene e puericultura, oferecidos
a grupos de trabalhadores do campo e da cidade, assim como atividade
missionária e conversionista de agentes oficiais católicos e protestantes, com
as suas escolas de catequese, escolas
dominicais, cursos de “formação de líderes”, cursos de formação e
especialização de mão de obra agrícola e operária), frações das classes
populares, como o campesinato, criam e atualizam permanentemente modalidades
equivalentes de saberes patrimoniais que
recobrem todos os setores de seu modo de vida.
A segunda suposição é a de que esses
diversos e complexos tipos e níveis de saberes populares são reproduzidos não
apenas “por imitação e sugestão”, como a antropologia aqui e ali tem sido
tentada a acreditar até pouco tempo, mas realizam-se como e através de redes e
sistemas familiares e extra-familiares de acesso, iniciação, ensino e controle
da atividade profissional derivada da aquisição do saber. Por toda a parte,
entre todas as modalidades de grupos subalternos, em todos os setores de seus
modos de vida, há categorias de especialistas; há redes, grupos ou mesmo
confrarias de profissionais acreditados; há regras-do-jogo, há códigos
reconhecidos de transferência e uso do saber popular, assim como princípios que
configuram sistemas de socialização primária e secundária, de atribuição de
identidades e de especialização entre as diferentes modalidades de saber-fazer
e de saber-pensar.
Uma terceira suposição é que estes
sistemas vivos e atuantes de criação e reprodução de conhecimento rústico que a
antropologia acostumou-se a perceber
apenas como modalidades de uma “cultura pronta” à descrição etnográfica, ou de uma ideologia
constituída em estado de discurso consagrado, constitui-se, em todos os seus
níveis e através de todos os seus cenários, como espaços e modos populares de
resistência política não apenas à culturas e à ideologias eruditas inculcadas,
mas também aos aparelhos, redes e sistemas dominantes e equivalentes de
inculcação de saberes.
Estas são as suposições que
constituem as questões centrais da presente pesquisa coletiva. O seu objeto de
estudo é o saber popular. Pretendemos
investigar diferentes estruturas de sistemas e de redes sociais de reprodução
do conhecimento entre alguns grupos populares. Grupos de sujeitos excluídos
tanto de uma posição dominante no âmbito das relações de produção de bens,
quanto de um espaço de produção erudita de símbolos e significados dessas
relações. Grupos aos quais as classes dominantes e os aparelhos ideológicos do
estado estendem tipos impostos de saberes tecnológicos, princípios de conduta
social e representações da ordem social destinados a inculcar sobre sujeitos
subalternos habitus e conhecimentos que os tornem e conservem produtivos
enquanto força de trabalho, e submissos enquanto força política.
Pretendemos discutir a estrutura e o
processo pedagógico existentes entre redes e sistemas populares de reprodução
de formas próprias e equivalentes de saber. Partimos do princípio de que, entre
muitas outras, uma das práticas sociais das classes subalternas é própria e
apropriadamente pedagógica. Ela representa o trabalho social destinado a fazer
criar e circular múltiplas formas de saberes próprios, que se conservam vigentes
através de situações intra e extra familiares de ensino-aprendizagem.
Partiremos também do princípio de
que o trabalho popular de reprodução do saber possui em todas as suas dimensões
uma dimensão política. Ele é a garantia da sobrevivência das redes de trocas de
símbolos e de serviços que configuram e sustentam o modo de vida dos diferentes
grupos de grupos sociais subalternos. É
o que faz, por exemplo, com que o campesinato conserve vivo o seu “catolicismo
popular”, não apenas como um sistema fragmentado de crenças e de cultos
absorvidos da religião oficial, mas como um sistema comunitário próprio de
produção de bens, serviços e símbolos do sagrado. Algo mantido não como um tipo
de cultura religiosa feita, mas como um sistema vivo de relações e regras que
prescrevem o trabalho religioso entre inúmeros categorias próprias de agentes:
mestres e aprendizes.
A estrutura e os processos de
reprodução do saber serão investigados em situações diferentes e junto a alguns
grupos definidos de trabalhadores subalternos. Esta estratégia de pesquisa que
fragmenta em aparência um mesmo objeto de estudo, tem uma razão. Não
pretendemos realizar apenas uma descrição etnográfica de alguns tipos de
situações pedagógicas populares, em um só tipo de grupo. Pretendemos realizar o
mesmo tipo de pesquisa junto a grupos que, separados aqui através do modo como
trabalham, talvez tenham tido algum dia uma mesma origem.
Assim, partindo de uma mesma
proposta de trabalho investigativo, em cada uma de suas experiências pessoais a
nossa pesquisa foca:
a) O
campesinato de prática agro-artesanal altamente especializada, como os pequenos
sitiantes produtores de vinhedos e de vinho na região de Caldas, no Sul de
Minas Gerais;
b) Os
agentes religiosos especializados do mundo camponês, trabalhadores autônomos do
sagrado, como os rezadores e as benzedeiras, ou mestres-dirigentes de grupos
rituais, como os de Folias de Santos Reis, de Ternos de Congos ou de grupos de
Folgazões da Dança de São Gonçalo, em áreas camponesas do Sul de Minas, de
Poços de Caldas a Machado;
c) Os
trabalhadores volantes (boias-frias), migrantes mineiros para cidades de São
Paulo, com uma biografia anterior de produtores camponeses pequenos
proprietários ou parceiros, agregados de fazendas próximas à cidade de
Campinas.
d) Os
trabalhadores da construção civil ou de fábricas, hoje residentes em bairros
populares da periferia de Campinas, e com uma biografia anterior que incorpore
o trabalho agrícola do camponês e do lavrador volante.
O mesmo problema de
pesquisa tomará focos diferentes de acordo com o grupo popular cuja prática
pedagógica venha a ser investigada. Mas o importante é que a separação
resguarde uma unidade: todos os grupos de sujeitos estudados devem ter tido a
mesma origem, logo, o mesmo tipo de socialização primária; os grupos que
mudaram de local de vida e de trabalho devem ter passado antes pelo tipo de
prática econômica do grupo anterior. Assim, cremos que será possível
identificar e discutir modos e sistemas de organização da prática pedagógica
popular, e também pesquisar processos de re-socialização e de reorganização das
estruturas do saber, na passagem de um tipo de conjuntura de trabalho para
outra, logo, de um modo de vida para o outro: da comunidade camponesa para o
bairro de “bóias-frias” na periferia de pequenas cidades; daí para as vilas
operárias de uma cidade maior.
Alguns focos e ponto de
partida de nossa pesquisa coletiva
1º.
Junto aos camponeses produtores de vinho, deveremos voltar com armas novas a um
velho problema de pesquisa em antropologia. Pretendemos investigar como a unidade
familiar do grupo doméstico, e uma unidade produtora de trabalho camponês, é
ainda uma unidade pedagógica que
reproduz, sobre os ensinos da socialização primária familiar tradicionalmente
reconhecida os ensinos da especialização
camponesa. O objeto da pesquisa aqui é, portanto, a reconstrução das
estruturas sociais e dos processos de transferência de conhecimentos que: a)
constituem o sujeito social do mundo e do modo de vida camponês; b) transferem
regras e habilidades de prática da tecnologia agrícola e artesanal que
capacitam novos trabalhadores familiares; c) diferenciam, de acordo com
critérios como o sexo, a idade, as aptidões pessoais reconhecidas, tipos de
especialistas domésticos (o trabalho da mulher, o trabalho do homem) e de
especialistas comunitários (artesãos, artistas, agentes de religião popular,
agentes de cura e de magia)[11].
Esta
abordagem nada tem a ver com as questões da “cultura e personalidade”. Não
pretendemos investigar em momento algum os efeitos de um determinado tipo de
socialização sobre a construção de um determinado tipo de sujeito social.
Faremos perguntas sobre a estrutura pedagógica da unidade familiar camponesa, e
sobre alguns dentre os processos do trabalho de transferência de tipos de
conhecimento de uma geração para a outra.
2º.
Serão as estruturas e as regras de
reprodução do saber popular além do âmbito familiar e dentro da classe, as que
mais nos interessarão. Nos mesmos locais camponeses do primeiro momento da
pesquisa, pretendemos investigar a formação, a estrutura e os processos de
trocas de relações saber-poder entre agentes camponeses especializados de
trabalho religioso, e também outros setores de trabalhos populares. Entre eles
existem unidades de âmbito também extra-familiar (grupos, redes de
especialistas autônomos, confrarias rituais) em que as regras de acesso, de
iniciação, de trajetória profissional, de controle do desempenho observam
princípios de um outro tipo de código de relações de direitos-e-deveres entre
as diferentes categorias de sujeitos envolvidos.
Sobretudo
junto a pequenas corporações de “trabalho religioso do catolicismo popular”
existem pelo menos dois tipos de especialistas rústicos cujas carreiras por
certo têm muito a revelar a respeito do que pretendemos estudar: a) os agentes
religiosos propriamente ditos; b) os agentes artistas, cantores e/ou
instrumentistas que acumulam em alguns casos também o saber e as funções dos
agentes religiosos.
Em
alguns estudos anteriores procuramos descrever aspectos desta estrutura de
trabalho ritual popular, mas também ali a questão do saber e dos usos do saber
ficou ainda oculta[12].
Em um destes estudos procuramos analisar o complexo sistema de ordens e
relações entre grupos que se articulam e cruzam (às vezes entre conflitos),
dentro de uma mesma série de cerimônias religiosas (Brandão, 1975, especialmente
os capítulos 7 e 10). O que pretendemos agora é dar o passo que falta na
direção das questões que temos colocado aqui. Importa investigar como agentes
religiosos populares, mediadores do sagrado junto aos seus próprios familiares,
às suas comunidades e aos seus companheiros de classe redefinem as regras das
estruturas de suas unidades de prática, ao mesmo tempo pedagógica e ritual.
Em
síntese, juntos os momentos 1º e 2º da pesquisa, o estudo proposto recobre os
sistemas de reprodução do saber que formam e especializam diferentes tipos de
pessoas sobretudo do campesinato e de trabalhadores já urbanizados, e migrados
do mundo rural, destinados a: a) práticas diferenciadas do trabalho doméstico;
b) práticas econômicas típicas do camponês especializado (trabalho agrícola e
artesanato de transformação dos produtos da lavoura); c) práticas e preceitos
destinados ao ingresso e a trajetória do sujeito socializado no mundo das
regras e símbolos do universo camponês; d) práticas e preceitos trabalho ritual
igualmente especializado. Os dois momentos envolvem também redes e sistemas de
reprodução do saber de âmbito intra e extra-familiares, todos eles, no entanto,
internos à classe – ou seja, fora do controle direto de instituições eruditas,
alheias à classe, e inculcadoras de tipos de saber externos aos quadros de
referência conceptual e ao modo de vida do campesinato.
3º.
O primeiro momento da pesquisa envolverá estruturas de transferência de
tecnologia rústica entre gerações. O segundo nem sempre. O terceiro momento
envolverá as redes que produzem o que tradicionalmente se denomina “ressocialização”.
Ao acompanhar ex-camponeses (sitiantes ou agregados de fazenda) em sua
trajetória de primeira migração, o que interessa saber seriam os modos de
reaprendizagem de trabalhadores volantes atuais: a) para o exercício do
trabalho agrário sob novas regras e em condições em vários aspectos muito
diferentes das anteriores; b) para a inclusão do sujeito migrante do mundo
camponês, e para o âmbito do modo de vida da periferia das cidades e do modo de
via do operário agrário.
Mais
uma vez o que importa não seria a descrição da transformação do camponês em
bóia-fria, do ponto de vista da redefinição de sua identidade e da aprendizagem
de conhecimentos necessários a novos modos de vida e de trabalho. Na direção da
proposta de toda a pesquisa, importará investigar de que modo este mundo do
trabalhador volante – facilmente localizável nas beiras de rua de inúmeras
cidades de São Paulo – organiza diferentes redes e sistemas de circulação de
tipos de saber de efeito ressocializador.
4º.
Finalmente, o último momento da pesquisa
apenas completa o terceiro e acompanha o ex-camponês migrante em sua chegada à
periferia de uma cidade maior, e à periferia do trabalho operário urbano, na
construção civil ou na unidade fabril.
Algumas
hipóteses conduzem, em conjunto, os quatro momentos da pesquisa:
1ª-
os diferentes tipos de saber popular
são criados e reproduzidos em todos os seus níveis e setores através de práticas pedagógicas internas aos sistemas
de trocas de bens, serviços e símbolos dos grupos que constituem e usam estes
tipos de saber.
2ª-
as práticas pedagógicas populares não
são casos simples de “imitação e sugestão”. São práticas ativas com graus
variáveis de institucionalização, conduzidas por tipos diferentes de
especialistas, de redes e de sistemas de reprodução do saber popular através de
processos de transferência de conhecimento internos às classes subalternas.
3ª-
estas unidades sociais de reprodução do saber popular fazem parte dos meios
políticos de resistência subalterna aos processos de expropriação de sistemas
simbólicos populares por unidades institucionais equivalentes e dominantes.
Os objetivos diretos da pesquisa
Esta pesquisa tem objetivos, na verdade, muito diferentes
uns dos outros. O primeiro deles é a esperança de aprofundar, com os seus dados
e reflexões, alguns aspectos pouco explorados da antropologia social em suas
teorias a respeito do problema das estruturas sociais (e não apenas das
estruturas lógicas ou simbólicas) dos sistemas de trocas de bens simbólicos nas
sociedades complexas. A idéia é a de incorporar a toda uma discussão iniciada
sobre o assunto, a questão dos modos sociais de reprodução do conhecimento. Isto
poderia ser confundido com a idéia de aproximar da teoria antropológica
problemas antigos de uma sociologia do conhecimento, o que só de longe é
verdadeiro.
Trata-se
de examinar, de um lado, um conjunto de temas a respeito de modos de
organização de grupos subalternos no interior da sociedade de classes, ali onde
o problema da reprodução do conhecimento importa apenas como uma dimensão
conhecida a mais do modo de vida destes grupos. Trata-se de examinar, de outro
lado, algumas situações concretas, em domínio restrito, de um tipo de prática
cujo exame permanece por fazer. Assim, este aprofundamento teórico pretendido
aqui a respeito dos modos sociais e usos políticos do saber e da reprodução do
saber tem alguma coisa a ver com questões recentes propostas pelas ciências
sociais sobretudo na França.
Um outro objetivo ligado de perto ao
primeiro é incorporar ao intensivo estudo das ideologias de grupos subalternos
no Brasil, a questão das práticas e das estruturas das práticas de reprodução
destas ideologias, como fração do universo conceptual popular.
Falo
agora na primeira pessoa.
Por outro lado, desde alguns anos
tenho feito esforços para pensar as bases de uma “antropologia da educação” que
nada fique devendo às teorias de “cultura e personalidade”. Neste ano de 1980, estarei
lecionando um curso de antropologia da educação para alunos da Faculdade de
Educação da UNICAMP, como um primeiro passo a um trabalho interdepartamental
entre educadores e antropólogos interessados em problemas teóricos e práticos
relativos à Educação. Associado
a este objetivo há um outro muito mais antigo em minhas preocupações. Trata-se
de fazer uma ponte entre a Antropologia Social e as práticas de Educação
Popular, para as quais tem faltado, reconhecidamente, uma série de informações
e reflexões sobre os fundamentos sociais de criação de formas de Cultura
Popular[13].
Finalmente, há um objetivo muito
prático. A presente pesquisa é proposta como uma atividade também pedagógica,
pois deverá ser vivida no interior de meu curso e partilhada por estudantes que
queiram compor um pequeno “grupo de pesquisadores entre a antropologia e a
pedagogia”. Trazendo para a UNICAMP práticas docentes-e-de-pesquisa de meu
trabalho de oito anos na Universidade Federal de Goiás, tenho o interesse de
formar uma pequena equipe de pesquisadores, alunos de graduação e de
pós-graduação da UNICAMP, especializados em trabalhos de campo nesta ainda
pouco trabalhada área de fronteira entre as ciências sociais e a pedagogia. Do
modo como foi pensada, a pesquisa será, para este grupo, um período de
treinamento intensivo de teoria e pesquisa.
Procedimentos
metodológicos
A pesquisa investiga relações sociais responsáveis pela reprodução de tipos de saber entre
camponeses, lavradores volantes e operários d pequenas unidades produtivas. Não
é, portanto, um estudo sobre a ideologia destes grupos tal como em abundantes
outros estudos nas ciências sociais. Ela versa sobre os seus modos próprios de
transferência de conhecimento. Trata-se de descrever estruturas e processos
diretos de trocas de ensino-aprendizagem que existem: a) em tipos desiguais de
especialistas populares; b) entre redes de relações de especialistas e de
especialistas/aprendizes; c) em sistemas complexos de organização das
estruturas populares de reprodução do saber em âmbito intra e extra-familiares.
Será preciso recuperar aqui os
métodos antropológicos de investigação de estruturas sociais, a partir das
relações interpessoais que as sustentam, a partir das redes mais ou menos
formais (networks), através de onde circulam as questões a serem
investigadas. Será preciso identificar, através de uma pesquisa de relações pedagógicas e estruturas pedagógicas de relações, as
próprias regras de organização de sistemas que articulam ao mesmo tempo o saber
e o trabalho.
A pesquisa será feita
simultaneamente em três áreas diferentes, tal como foi descrito antes. Grupos
de uma pesquisadora-solo, ou de no máximo dois pesquisadores ocuparão cada uma
das áreas proposta de estudos de campo. Os trabalhos de campo estarão baseados
em procedimentos de observação sistemática
e observação participante, sobre as
situações pedagógicas previamente investigadas e escolhidas para um exame mais
profundo. Entrevistas com agentes populares de reprodução do saber serão feitas
sobretudo em momentos posteriores, e deverão ser diretamente montadas sobre os
dados obtidos nas fases anteriores de pesquisa prévia.
Em sínteses, e de forma sumária, a
pesquisa atravessará, em cada uma de suas áreas, os seguintes momentos:
a) Contato
inicial com a população a ser investigada;
b) Coleta
de dados sobre o modo de vida em seus
diferentes setores: relações domésticas, contextos de trabalho, religião, etc.;
c) Definição
das situações pedagógicas relevantes,
para o caso de cada grupo social pesquisado;
d) Observação
sistemática e observação participante (quando possível) das situações
pedagógicas selecionadas;
e) Entrevistas,
estudos de caso, histórias de vida com agentes populares de reprodução do
saber, dentro e fora de contextos diretos da prática econômica.
Cronograma
previsto para a pesquisa
1º
de maio / 30
de junho 80 |
·
formação
dos grupos de pesquisa. ·
Início
dos estudos teóricos e metodológicos para a revisão do projeto. ·
Determinação
dos procedimentos metodológicos. ·
Treinamento
dos pesquisadores |
1º
de julho / 15
de agosto |
·
1º
período de trabalhos de campo ·
Definição
final das áreas de pesquisa |
16
de agosto / 30 de setembro |
·
revisão
da pesquisa com os dados obtidos no 1º período de trabalhos de campo |
1º
de outubro / 1º de dezembro |
·
2º
período de trabalhos de campo (período não-intensivo) |
20
de dezembro /20 de fevereiro 81 |
·
3º
período de trabalhos de campo |
1º
de março / 1º de maio |
·
tratamento
dos dados obtidos até aqui ·
revisão
teórica da pesquisa |
2
de maio / 15
de junho |
·
4º
período de trabalhos de campo (período não-intensivo) |
1º
de julho / 15
de agosto |
·
5º
período de trabalhos de campo (coleta final de dados, complemento de lacunas
de pesquisa) |
1º
de setembro / 30
de outubro |
·
tratamento
dos dados obtidos ·
estudos
e treinamento para a síntese final dos dados obtidos e para início de redação
do relatório final |
1º
de novembro / 28
de fevereiro 82 |
·
redação
do relatório final (conclusão da pesquisa) |
Durante
este período, é a seguinte a previsão das ocupações do pesquisador principal da
pesquisa:
a)
Chefia do Conjunto de Antropologia + curso de antropologia da educação
(graduação) + curso sobre campesinato (pós-graduação), no 1º sem. 1980;
b)
Um curso na graduação no 2º semestre de
1980;
c)
Afastamento (liberação de aulas para pesquisa) durante o 1º semestre de 1981 (8
meses, contando com férias e recessos);
d)
Um curso previsto na pós-graduação em
antropologia, no 2º semestre de 1981.
Fora o período de maio a junho de
1980, em que não poderei dedicar mais do que 10 hs semanais à pesquisa, fora o
período do item c, em que estarei
dedicado em tempo integral à pesquisa, a previsão é de uma dedicação de 20 a 25 hs semanais à pesquisa em
períodos letivos e de cerca de 40 h semanais em períodos de férias escolares.
Os
estudantes participantes da pesquisa deverão previamente definir a previsão de
seu investimento nas diferentes atividades dela, concluídas aí as reuniões
extra-aulas para a análise do andamento pessoal e coletivo da investigação.
Orçamento
da pesquisa
A presente pesquisa envolve um
pesquisador principal para o qual não são pedidos recursos de manutenção. A
partir de 1981, a pesquisa deverá contar com a participação de uma professora
do Conjunto de Antropologia da UNICAMP, para a qual igualmente não serão
pedidos gastos de manutenção. Finalmente, ela contará com uma equipe de pelo
menos 6 alunos de ciências sociais da UNICAMP: 4 de nível de graduação (acima
do 3º ano) e 2 de pós-graduação.
1.
contratação de assistentes de pesquisa:
4
alunos de graduação e 2 alunos de pós (pagamento
por 10 meses de trabalho) |
4.000
x 4 x 10 = 160.000,00 6.000
x 2 x 10 = 120.000,00 |
2.
serviços de datilografia durante a
pesquisa |
10.000,00 |
3.
viagens aos locais de pesquisa |
Caldas
– 50 x 250 = 12.500,00 Cidades
perto de Campinas – 50 x 120 = 6.000,00 Em
Campinas – 50 x 20 = 1.000,00 Total = 19.500,00 |
4.
diárias durante o trabalho de campo com permanência no
local (previsão de 60 dias) sem
permanência no local (previsão de 60 dias) |
60
x 4 pessoas x 200 = 48.000,00 60
x 4 pessoas x 100 = 24.000,00 |
5.
gastos para administração do projeto |
1
pessoa x 2.000 em 10 meses = 20.000,00 |
6.
gastos com a elaboração do relatório
final |
20.000,00 |
TOTAL
GERAL |
421.500,00 |
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[1] Projeto escrito em março de 1980.
Em geral, o texto mantém a grafia da
época, prévia ao Novo Acordo Ortográfico, e a organização original. Algumas ligeiras
alterações foram feitas, por economia de espaço, ao juntar alguns parágrafos; também
foram verificadas, completadas e corrigidas algumas referências bibliográficas
que aparecem no final, ao tempo que todas elas foram adequadas à formatação atual,
adotada pela revista (nota dos organizadores do dossiê).
[2]. Um dos raros livros sobre o problema
da socialização escritos fora do âmbito da “cultura e personalidade” e dentro
da antropologia social foi editado por Philip Mayer, em 1970, Socialization – The approach from Social Anthropology.
[3]. Ao falar sobre a situação dos estudos
de socialização na antropologia social britânica, Audrey Richards perguntava se
em 1965 haveria na Inglaterra ainda algum departamento de universidades
oferecendo cursos de “cultura e personalidade”. Ele citou então um estudo
recente sobre os interesses de pesquisa entre membros da ASA. De 125
antropólogos apenas 8 mencionaram algo próximo à “cultura e personalidade”. As
monografias de então continham menos informações sobre relações familiares
produtoras de saber de efeito socializador, do que as de 30 anos antes.
(Richards, 1970, p. 7).
[4]. Remeto o leitor aos seguintes textos,
tomados aqui como os melhores exemplos dos estudos de comunidade no Brasil:
Antônio Cândido, Os parceiros do Rio
Bonito, especialmente o item – Pais e
filhos, educação, p. 247 e seguintes; Donald Pierson,
Cruz das Almas, especialmente o
capítulo X – Relações de família e o compadrio;
Fukui, Lia F. Garcia, Sertão e Bairro
Rural, especialmente o capítulo I da 2ª parte, item 6.
[5]. O mesmo aspecto é tratado de forma
semelhante em pesquisa sobre um outro contexto. Ao estudar o sistema de
relações de garimpos em Patrocínio Paulista, Marisa de Andrade Marconi descreve
a relevância atualmente atribuída pelos pais garimpeiros à educação escolar de
seus filhos, e a conseqüente evasão infantil do trabalho nos garimpos (Marconi,
sd, p. 58-59). Também aqui a prática do ensino da
tecnologia rústica de trabalho no garimpo é apresentada ao leitor sem ser, no
entanto, analisada. Como a autora não encontrou situações pedagógicas formais
entre os garimpeiros, ela não descreve situações pedagógicas populares passadas
dentro e fora do âmbito doméstico.
[6] . Também Hoggart,
um dos autores a quem Leite Lopes faz referências em seu estudo, fala apenas de
passagem sobre o “saber profissionalizante” do operário inglês, sem fazer
qualquer descrição mais pormenorizada sobre os processos locais de sua
aquisição. “Muitos deles foram educados no que deveria hoje ser chamado uma
escola secundária moderna, mas ainda popularmente conhecida como escola
‘elementar’. No que se refere ao trabalho que desempenham, são geralmente
operários especializados ou não, ou artífices, que fizeram por vezes uma
aprendizagem” (Hoggart,
1973, p 24).
[7]. Há algumas evidências de que o
interesse pela questão da circulação social do saber é distribuído quase ao
acaso, de acordo com o tipo de objeto constituído pelo pesquisador. No acervo
de pesquisas sobre religiões populares no Brasil, o problema da formação, da
iniciação e da carreira eclesiástica dos agentes religiosos populares quase
nunca é sequer mencionado nos estudos sobre o catolicismo popular e o pentecostalismo.
No entanto, a estrutura de iniciação de filhos-de-santo é parte importante de
algumas pesquisas sobre formas religiosas de origem afro-brasileira. Consultar
os trabalhos de Vivaldo de Costa Lima sobre os Candomblés Jêjê-Nagô
da Bahia e o de Anaiza Vergolino
e Silva sobre grupos rituais de origem afro-brasileira no Pará (1971 e 1976,
respectivamente).
[8]. Trata-se de uma série de pesquisas de campo
realizadas em Goiás entre 1972 e 1975 e às quais, em conjunto, dei o nome de: Sociedades rurais do Mato Grosso goiano.
Entre as pesquisas, algumas delas feitas com a participação do sociólogo José
Ricardo Ramalho, interessam mais de perto aqui as seguintes: a) Relações de produção e relações de
parentesco em uma sociedade rural do Mato Grosso goiano (vol 1) (1975); b) Crenças
e costumes de comida em Mossâmedes (vol. 5) (1976).
[9]. Há um importante dado da ideologia
subalterna não entrevisto pelos antropólogos e sobre a que José de Sousa
Martins chamou a atenção. O lavrador associa logicamente a escola ao trabalho, não porque ele prepare seu filho remotamente
para um ofício melhor, mas porque o ato de aprender é percebido como uma
prática produtiva, como um tipo de trabalho, portanto. Por isso, ao falar sobre
como e onde a criança aprende para ser um lavrador, ele fala do trabalho. Não
só porque é dentro de situações concretas de trabalho agrário que a criança
aprende, como também porque este aprender é um trabalho (Ver Martins, 1974).
[10]. Trata-se de dois estudos feitos, um em
1978 e outro entre 1977 e 1979 [1980]: “Deus
te salve, Casa Santa”: seis estudos sobre o catolicismo popular e Os deuses de Itapira: um estudo sobre a
religião popular. Em ambos faço algumas referências aos mistérios do saber
e às estruturas rituais de saber e comando de grupos rituais. Remeto também o
leitor ao estudo de Regina de Paula Santos Prado: Todo Ano Tem: as festas na estrutura social camponesa (1977).
[11]. Ana Maria Canesqui
faz uma das mais completas descrições sobre os papéis sociais domésticos e os
tipos diferenciais de socialização do homem e da mulher. Ver seu Comida de pobre, comida de rico (1976).
[12]. Trata-se de dois estudos sobre rituais de
negros do catolicismo popular: A dança
dos congos da Cidade de Goiás (1977) e A
festa do santo de preto (1975).
[13]. Consultar, por exemplo, os trabalhos
de Paulo Freire, onde há momentos de descrição de tipologias da consciência
popular e de uma cultura popular, sem que a discussão das redes populares de
produção destas consciência e cultura sejam discutidas ou sequer consideradas
(1967, 1968).